terça-feira, novembro 07, 2006

O Julgamento de Saddam


O julgamento de Saddam Hussein foi a crónica de uma condenação há muita anunciada. Não se esperava outro desenlace, que não a pena de morte.
Também não é de estranhar que o veredicto tenha coincidido com o derradeiro período da campanha eleitoral dos EUA e que o presidente George W. Bush a ele se tenha associado, considerando o acontecimento “uma grande conquista para a jovem democracia iraquiana e o seu governo constitucional.” É evidente que Bush falava mais para os americanos (afinal a captura de Saddam lembra um troféu de caça) do que para os iraquianos.
Sobre o julgamento em si, a história é antiga: é a da justiça dos que sofreram às mãos do tirano e, ainda que assista a estes razão, tal não chega para fazer um julgamento justo, com garantias para o acusado e a sua defesa. Mais grave, este veredicto poderá ter uma tradução étnica, simbolizar a vingança xiita sobre os seus inimigos sunitas, históricos detentores do poder e da riqueza no Iraque; mais uma acha para a fogueira de violência sectária que assola este país.
Há quem se tenha entregue a um exercício de relativismo moral, como foi o caso do director do PÚBLICO, hoje, num vergonhoso editorial.
Para José Manuel Fernandes, é um sinal positivo que este julgamento tenha chegado ao fim, mesmo que durante o processo tenham sido assassinados três advogados de defesa ou que o governo iraquiano tenha feito uso da prerrogativa da substituição dos juízes, quando estes não eram do seu agrado, certamente num gesto emblemático da separação de poderes. Nisto, vislumbra, o putativo articulista, o Estado de Direito em gestação. E a equivalência estabelecida com o julgamento de Milosevic é do domínio da desonestidade intelectual (este processo decorreu dentro das regras estabelecidas do Direito, com o réu a encarregar-se da sua defesa livre de constrangimentos e com juízes imparciais e independentes; o que correu mal no Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia foi o maniqueísmo da acusação, que projectou a imagem da culpa colectiva do povo sérvio, foi isso que feriu a legitimidade deste tribunal). Mas vai ainda mais longe o nosso ideólogo neoconsevador, ao apontar as virtudes deste julgamento por oposição à paralisia que é atributo do sistema judicial português: “e num país como Portugal, onde aos réus são dadas todas as garantias de defesa, o julgamento seria porventura anulado (para além de que duraria). Mas também outros julgamentos de crimes de guerra realizados em tribunais internacionais correriam o risco de serem nulos em Portugal, o que não os torna menos legítimos ou importantes.”
Perante isto, interrogo-me, nos termos do próprio José Manuel Fernandes, se não é possível ter um julgamento justo quando estão em causa crimes de guerra? É que se cedemos neste ponto, estamos a caminhar mais uma vez no sentido da barbárie.