quarta-feira, maio 23, 2007

O Ressentimento

No PÚBLICO de Segunda-feira, esta interessante entrevista do historiador Marc Ferro.
Explica-nos que não devemos ignorar o ressentimento, enquanto força motriz do conflito entre povos e nações; lastro fundo na história, e longe de ter sido remetido para o caixote do lixo, continuará a determinar muitos dos conflitos que hão-de vir. E outros que se julgavam esquecidos.
As ideologias liberal e marxista, ambas filhas da Razão, acreditam que pelo advento das forças produtivas ou pela expansão do livre comércio conduzirão a humanidade a um mundo de paz e prosperidade. Em resumo, à felicidade. Ignoram assim o papel da memória e das identidades colectivas, bem como o ressentimento que muitas vezes a elas lhes subjaz.
Não, não podemos ignorar o papel do ressentimento. Na periferia parisiense (ingénuos são os que pensam esconjurar este sentimento por meio de generosas prestações sociais). Ou na Estónia (embora na senda da prosperidade económica, estão à vista os antagonismos étnicos; com os russos, que aí vivem a condição apátridas). E Mesmo entre nações que partilham o mesmo projecto político/económico , porque, dando voz a Ferro, o ressentimento é durável:


PÚBLICO:

No seu último livro*, propõe uma leitura da História, das suas guerras e crises, como origem no ressentimento. A esta luz, que conflitos estamos hoje a preparar para o futuro?

Marco Ferro – Muitos. Primeiro há um ressentimento antigo que sobrevive. E aquele que sobrevive de uma forma mais antiga é o do islamismo fundamentalista. O ressentimento do islamismo não tem fronteiras e isso constitui um garante da sua sobrevivência.
O problema também é que as sociedades que têm ressentimento não estão nunca satisfeitas. Esperam sempre mais. Quando Bin Laden bombardeou Nova Iorque O ressentimento não se exprime em voz alta. Bin Laden não exprimiu o seu ressentimento contra o Ociedente, as cruzadas…

Mais à frente:

Há um velho slogan anarquista que proclama “é preciso fazer tábua rasa do passado”, esquecer o passado.
Mas não podemos esquecer o passado. Porque o passado não se esquece: há a família, há a memória.
No meu último livro dei o exemplo do Sul da França, do Languedoc, onde de família em família se foi passando a memória da cruzada do Papa [Inocêncio III] contra os albigenses, que eram cristão heréticos. Foi há sete séculos e continua a falar-se disso. Fala-se pouco, quase nunca, mas é o substrato que alimenta a hostilidade face ao Norte da França. Tudo o que vem de Paris é bárbaro
(…)
A memória permanece e a desconfiança também. Em 1907, nos confrontos contra os produtores de vinho amotinados, estes gritavam na rua: “Não somos albigenses”.
(…)
Esta memória tem alimentado a contestação contra o Estado, contra Paris, contra o exército.

Depois, o historiador ameniza um pouco as coisas, dizendo que o ressentimento pode não desembocar no conflito violento, na vingança. Por vezes tal não sucede, havendo espaço para o entendimento. E cita a exemplo o caso da França e da Alemanha. Faz também alusão à Africa do Sul.
O sucesso sul-africano remeteu-me, não obstante, para o livro de J. M. Coetzee, Desgraça, retrato amargo da África do Sul pós-apartheid.
Coetzee narra-nos um doloroso processo de expiação, na figura de Lucy, que encarna (ou pensa encarnar) a culpa histórica do povo afrikander. Acaba violada pelos seus vizinhos negros, mas resigna-se a viver nesse quotidiano feito de humilhação, na presença dos violadores. Nela, a sujeição é o preço a pagar para permanecer na terra. Neles quase não há palavras, mas sentimos aquele ressentimento que vem da História.