quinta-feira, janeiro 18, 2007

A Noção de «Típico», o Estado-providência e o Aborto

"...Por mais ridícula que possa parecer esta noção de típico, contém um núcleo duro de verdade, consistente no facto de cada noção ideológica aparentemente universal se ver sempre contaminada por esta ou aquela componente de carácter universal que deforma a sua universalidade própria e sapa a sua eficácia. Na rejeição actual do sistema do Estado-providência, característica, por exemplo, da nova direita nos Estados Unidos, a ideia muito difundida de que o Estado-providência tal como hoje existe não funciona é contaminada pela representação mais concreta da famosa mãe celibatária afro-americana, como se o Estado social constituísse, em última instância, um programa destinado a acudir às mães negras celibatárias: o caso particular da «mãe negra celibatária» é tacitamente considerado «típico» da ideia amplamente aceite que existe acerca do Estado-providência e do que nele não funciona como deve ser… E passa-se a mesma coisa com toda a noção ideológica universal: continua a ser necessário procurar o elemento particular que arruína a eficácia específica de uma noção ideológica. No caso da campanha da Maioria Moral contra o aborto, por exemplo, o caso «típico» é o perfeito oposto da mãe negra (desempregada): a imagem de uma mulher profissionalmente bem sucedida e sexualmente livre, que confere prioridade à sua carreira em detrimento do seu dever «natural» de maternidade (imagem que entra em contradição flagrante com os factos, que nos fazem saber que a grande maioria dos abortos ocorrem em famílias modestas e numerosas).
Esta «inversão» específica, o facto de o elemento particular ser decretado «típico» da noção universal, é o elemento da fantasma, do fundamento/suporte fantasmático da noção ideológica universal – ou, nos termos de Kant, desempenha o papel de «esquematismo transcendental», traduzindo a noção universal vazia numa noção que se liga e aplica à nossa «verdadeira experiência». Enquanto tal, esta especificação fantasmática nunca é simples ilustração ou exemplo insignificante: é neste plano, em que a componente particular se imporá como «típica», que as lutas ideológicas serão ganhas ou pedidas. Para voltarmos ao nosso exemplo do aborto: a partir do momento em que percebermos como «típico» o caso do aborto numa família proletária numerosa e incapaz de suportar economicamente a entrada em cena de mais uma criança, a perspectiva sofre uma radical alteração".

Slavoj ZiZek, in Elogio da Intolerância.