Os filhos da "canalha" anarco-sindicalista e faquista de Alcântara
A propósito da entrevista de Rui Ramos a Jorge Silva Melo, Pacheco Pereira escreveu, no PÚBLICO de Quinta-feira passada, um artigo de que não resisti a reproduzir aqui este excerto, por me parecer carregado de sentido:
Eu vejo-a vir ao longe perseguida
como de um vento lívido varrida
cheia de febre, rota, muito além…
- pelos caminhos ásperos da História –
enquanto os reis e os deuses entre a glória
não ouvem a ninguém.
Ela vem triste, só, silenciosa,
Tinta de sangue, pálida, orgulhosa,
Em farrapos na fria escuridão…
Buscando o grande dia da batalha.
É ela! É ela! A lívida Canalha!
Caim é vosso irmão.
Eles lá vêm famintos e sombrios,
Rotos, selvagens, abanando aos frios,
Sem leite e pão, descalços, semi-nus…
(…)
São os tristes, os vis, os oprimidos
(…)
São os párias, os servos, os ilotas
Vivem nas covas húmidas, ignotas
(…)
Eles vêm de muito longe, vêm da História.
Frios, sinistros, maus como a memória
Dos pesadelos trágicos e maus.
(Gomes Leal, A Canalha)
Claro que ninguém vai ao teatro, claro que acabaram os cafés (pelo menos em Lisboa), claro que se desertificaram os bairros, claro que acabou a Lisboa dos anos 60, tão íntima como provinciana, onde éramos os absolutos cosmopolitas, exactamente porque os filhos dos deserdados das cheias, os filhos dos operários do Barreiro, os filhos das criadas de servir, os filhos dos emigrantes de Champigny, os filhos da "canalha" anarco-sindicalista e faquista de Alcântara mandam no consumo e o mundo que eles querem é muito diferente. Eles entraram pelos cafés dentro e transformaram-nos em snackbars e em lanchonetes, entraram pelas televisões e querem os reality shows, entraram pela "cultura" e pela política e não querem o que nós queremos, ou melhor, o que nós queríamos por eles. O acesso das "massas" ao consumo material e "espiritual" faz o mundo de hoje, aquele que é dominado pela publicidade, pelo marketing, pelas audiências, pelas sondagens. É um mundo infinitamente mais democrático, mas menos "cultural" no sentido antigo, quando a elite, que éramos nós, decidia em questões de bom senso e bom gosto.E agora? Queríamos que "eles" tivessem voz e agora que a têm não gostamos de os ouvir quando o enriquecimento revelado por todos os indicadores económicos e sociais dos últimos 30 anos transformou muitos pobres na actual classe média, "baixa" como se diz na publicidade, nos grupos B e C das audiências. Nós queríamos que eles desejassem Shakespeare e eles querem a Floribella, os Morangos e o Paulo Coelho. E depois? Ou ficamos revoltados ou pedagogos tristes e ineficazes, ou uma mistura das duas coisas. Nós ajudámos a fazer este mundo de mais liberdade e mais democracia, que o é de facto. O 25 de Abril foi o que foi porque a geração de 60 o fez assim. Se os militares tivessem derrubado Salazar nos anos 40 ou Delgado o tivesse feito em 1958, o país seria certamente muito diferente.
Pacheco Pereira, in Publico (texto também disponível no Abrupto).
Isto mereceria um comentário mais aprofundado, mas o tempo é um bem escasso, como sabemos ou às vezes tão-só intuímos.
Creio que há um determinismo exagerado nesta formulação de Pacheco Pereira, à parte a descrição exacta da realidade social de nosso país.
Os netos e os filhos da “canalha anarco-sindicalista...” não são só Reality Shows, Morangos e Floribelas. Com o 25 de Abril e a democracia, alguns dos filhos “das criadas de servir” chegaram à universidade e até estudaram, entre outras coisas, filosofia. Muitos alargaram os seus horizontes culturais. O 25 de Abril foi também isso.
Talvez nunca consigamos resolver o dilema, mas alargar o leque de escolhas já poderia ser um começo. Aí, ao contrário de Pacheco Pereira, eu creio na importância das políticas culturais desenvolvidas pelo Estado (mesmo que isso signifique invocar o fantasma de Malraux) em estreita articulação com as do domínio da educação. É que o mercado nem sempre é tradução dos desejos dos indivíduos. E isto é particularmente verdade para o mercado televisivo, cada vez mais estreito e dominado por produtoras às quais as televisões compram os tais reality shows e outros enlatados. O poder do espectador consumidor é quase nulo neste universo sem escolha.
Eu vejo-a vir ao longe perseguida
como de um vento lívido varrida
cheia de febre, rota, muito além…
- pelos caminhos ásperos da História –
enquanto os reis e os deuses entre a glória
não ouvem a ninguém.
Ela vem triste, só, silenciosa,
Tinta de sangue, pálida, orgulhosa,
Em farrapos na fria escuridão…
Buscando o grande dia da batalha.
É ela! É ela! A lívida Canalha!
Caim é vosso irmão.
Eles lá vêm famintos e sombrios,
Rotos, selvagens, abanando aos frios,
Sem leite e pão, descalços, semi-nus…
(…)
São os tristes, os vis, os oprimidos
(…)
São os párias, os servos, os ilotas
Vivem nas covas húmidas, ignotas
(…)
Eles vêm de muito longe, vêm da História.
Frios, sinistros, maus como a memória
Dos pesadelos trágicos e maus.
(Gomes Leal, A Canalha)
Claro que ninguém vai ao teatro, claro que acabaram os cafés (pelo menos em Lisboa), claro que se desertificaram os bairros, claro que acabou a Lisboa dos anos 60, tão íntima como provinciana, onde éramos os absolutos cosmopolitas, exactamente porque os filhos dos deserdados das cheias, os filhos dos operários do Barreiro, os filhos das criadas de servir, os filhos dos emigrantes de Champigny, os filhos da "canalha" anarco-sindicalista e faquista de Alcântara mandam no consumo e o mundo que eles querem é muito diferente. Eles entraram pelos cafés dentro e transformaram-nos em snackbars e em lanchonetes, entraram pelas televisões e querem os reality shows, entraram pela "cultura" e pela política e não querem o que nós queremos, ou melhor, o que nós queríamos por eles. O acesso das "massas" ao consumo material e "espiritual" faz o mundo de hoje, aquele que é dominado pela publicidade, pelo marketing, pelas audiências, pelas sondagens. É um mundo infinitamente mais democrático, mas menos "cultural" no sentido antigo, quando a elite, que éramos nós, decidia em questões de bom senso e bom gosto.E agora? Queríamos que "eles" tivessem voz e agora que a têm não gostamos de os ouvir quando o enriquecimento revelado por todos os indicadores económicos e sociais dos últimos 30 anos transformou muitos pobres na actual classe média, "baixa" como se diz na publicidade, nos grupos B e C das audiências. Nós queríamos que eles desejassem Shakespeare e eles querem a Floribella, os Morangos e o Paulo Coelho. E depois? Ou ficamos revoltados ou pedagogos tristes e ineficazes, ou uma mistura das duas coisas. Nós ajudámos a fazer este mundo de mais liberdade e mais democracia, que o é de facto. O 25 de Abril foi o que foi porque a geração de 60 o fez assim. Se os militares tivessem derrubado Salazar nos anos 40 ou Delgado o tivesse feito em 1958, o país seria certamente muito diferente.
Pacheco Pereira, in Publico (texto também disponível no Abrupto).
Isto mereceria um comentário mais aprofundado, mas o tempo é um bem escasso, como sabemos ou às vezes tão-só intuímos.
Creio que há um determinismo exagerado nesta formulação de Pacheco Pereira, à parte a descrição exacta da realidade social de nosso país.
Os netos e os filhos da “canalha anarco-sindicalista...” não são só Reality Shows, Morangos e Floribelas. Com o 25 de Abril e a democracia, alguns dos filhos “das criadas de servir” chegaram à universidade e até estudaram, entre outras coisas, filosofia. Muitos alargaram os seus horizontes culturais. O 25 de Abril foi também isso.
Talvez nunca consigamos resolver o dilema, mas alargar o leque de escolhas já poderia ser um começo. Aí, ao contrário de Pacheco Pereira, eu creio na importância das políticas culturais desenvolvidas pelo Estado (mesmo que isso signifique invocar o fantasma de Malraux) em estreita articulação com as do domínio da educação. É que o mercado nem sempre é tradução dos desejos dos indivíduos. E isto é particularmente verdade para o mercado televisivo, cada vez mais estreito e dominado por produtoras às quais as televisões compram os tais reality shows e outros enlatados. O poder do espectador consumidor é quase nulo neste universo sem escolha.