sexta-feira, novembro 23, 2007

Sobre a Democracia e a Venezuela

Ainda sobre a questão venezuelana, eu creio que o Pedro Magalhães incorre num erro conceptual muito comum entre os cientistas sociais, que é o da excessiva latitude na definição de um conceito central como o da democracia, o que nos conduz para a cómoda formulação de que “não há consenso” quanto à sua substância.

Ora, penso que convém não perder de vista a etimologia da palavra: Democracia significa literalmente o governo do povo, nada mais do que isso. Pressupõe que o povo exerça directamente o governo da Polis, em assembleias (emanação da democracia directa), ou escolha os seus representantes por meio de eleições abertas (competitivas) e livres. Tudo o mais, como a separação de poderes, os direitos económicos, sociais e de protecção das minorias, são aquisitivos civilizacionais, que nalguns casos podem mesmo preceder a própria instauração da democracia. Com efeito, nos chamados regimes do liberalismo constitucional já estavam presentes muitos daqueles atributos, como por exemplo a limitação do exercício do poder, a igualdade face à lei e a consagração da esfera de autonomia do indivíduo, passando pela liberdade de culto e a tolerância para com as minorias. No entanto, nestes regimes, o voto era censitário e capacitário, não estava ainda consagrado o sufrágio universal; portanto, não eram democráticos (vide o caso da Inglaterra do século XIX).

Se hoje concebemos a democracia como indissociável daqueles atributos, isso deve-se à evolução histórica, cultural e simbólica da política neste nosso Ocidente. Mas se queremos ser rigorosos, a democracia é apenas a capacidade de o povo escolher livremente a forma de governo que mais lhe aprouver. Nada nos diz quanto à bondade de tais escolhas. Acontece que por vezes vão no sentido contrário à liberdade ou à tolerância, como na cosmopolita Viena dos fins do século XIX, em que o alargamento do sufrágio conduziu à vitória, em eleições democráticas, do anti-semita Karl Lueger. Ou como, mais recentemente, na Jugoslávia, em que a instauração da democracia precipitou os Balcãs numa espiral de violência étnica.

Pode ser que, também na Venezuela, os leitores com o seu voto democrático legitimem uma deriva autoritária. Esse risco existe, embora eu não seja tão afirmativo quanto o Pedro (na Venezuela, a oposição está presente e mobiliza meios, é preciso não esquecer). Até agora Chávez ainda não deu sinais de querer embargar o processo eleitoral democrático que tem sido a sua fonte de legitimação.