Os democratas do revisionismo histórico
Tens um título de Locke a encimar um post que pretende fazer luz sobre o período em que Salvador Allende governou o Chile, e fazes ainda alusão a um artigo do CATO, a todos os títulos vergonhoso.
Ora devo dizer-te que, involuntariamente, cais na legitimação do golpe, ao vires por interposto filósofo afirmar que “se os governantes se constituem em tirania para além da lei, o povo tem o direito de se revoltar.”
Resta saber quem representava o povo, nos trágicos acontecimentos de 11 de Setembro de 1973. Se os militares golpistas e a CIA (que, não sei se sabias, financiou greves e tinha entre os seus agentes aquele que viria a ser o chefe da secreta de Pinochet, Manuel Contreras); se os membros de um governo eleito e os seus apoiantes, muitos dos quais acabaram nos calabouços militares.
É de facto espantoso o exercício de revisionismo histórico a que se entrega esta direita, moderna e liberal. Ou talvez não. Se olharmos para esta citação, tudo se ilumina:
At times it is necessary for a country to have, for a time, some form or other of dictatorial power. As you will understand, it is possible for a dictator to govern in a liberal way. And it is also possible for a democracy to govern with a total lack of liberalism. Personally I prefer a liberal dictator to democratic government lacking liberalism. My personal impression — and this is valid for South America - is that in Chile, for example, we will witness a transition from a dictatorial government to a liberal government. And during this transition it may be necessary to maintain certain dictatorial powers, not as something permanent, but as a temporary arrangement.
F. Hayek
Aderiram os liberais às teorias da conspiração. Falam de uma orquestração de Allende, para mudar a constituição, e da rebelião cívica que travou tais intentos. Reparem bem: já não se fala de golpe militar, mas sim de “rebelião cívica”. Assim vai o revisionismo liberal de Pinera, o autor do artigo do CATO aludido atrás.
Mas o que fez assim de tão grave Salvador Allende, para ser visto como um tirano? Nacionalizou indústrias, prática política assaz corrente na época (até na Europa Ocidental isso sucedia), ferindo é certo interesses americanos, e procurava lançar uma reforma agrária com o objectivo de distribuir terras pelos mais pobres. Tal bastou para ser visto como um perigoso comunista a soldo de Havana e Moscovo, tese que ainda hoje reúne fiéis, como se comprova pelas reacções destes grandes democratas.
O que os move é a vontade de branquear Pinochet, pelo aviltamento da memória desse grande democrata e humanista que foi Salvador Allende. É a tentativa da equivalência moral que procuram estabelecer entre o assassino e corrupto ditador e o político que acreditava nas virtudes da democracia representativa que era Salvador Allende, com muitos anos da sua vida dedicada à causa pública; como membro de longa data do partido socialista; como senador; como ministro e, mais tarde, presidente da república, depois de eleito pela coligação Unidade Popular, que reunia socialistas e comunistas numa frente comum (1970).
Mas quem são estes que vêm hoje acusar Allende?
São os que falam de democracia com arrogância moral de sempre, eles, os grandes democratas da democracia naturalizada, mas que, nos momentos conturbados da História, não hesitam em massacrar communards, aprovar, enquanto deputados da assembleia nacional, plenos poderes para Pétain e pôr os comunistas (falando à maneira de Brecht) em estádios de futebol.
Porque a História repete-se, e esta gente não tem estatura moral para ombrear com um homem como Allende.
Ora devo dizer-te que, involuntariamente, cais na legitimação do golpe, ao vires por interposto filósofo afirmar que “se os governantes se constituem em tirania para além da lei, o povo tem o direito de se revoltar.”
Resta saber quem representava o povo, nos trágicos acontecimentos de 11 de Setembro de 1973. Se os militares golpistas e a CIA (que, não sei se sabias, financiou greves e tinha entre os seus agentes aquele que viria a ser o chefe da secreta de Pinochet, Manuel Contreras); se os membros de um governo eleito e os seus apoiantes, muitos dos quais acabaram nos calabouços militares.
É de facto espantoso o exercício de revisionismo histórico a que se entrega esta direita, moderna e liberal. Ou talvez não. Se olharmos para esta citação, tudo se ilumina:
At times it is necessary for a country to have, for a time, some form or other of dictatorial power. As you will understand, it is possible for a dictator to govern in a liberal way. And it is also possible for a democracy to govern with a total lack of liberalism. Personally I prefer a liberal dictator to democratic government lacking liberalism. My personal impression — and this is valid for South America - is that in Chile, for example, we will witness a transition from a dictatorial government to a liberal government. And during this transition it may be necessary to maintain certain dictatorial powers, not as something permanent, but as a temporary arrangement.
F. Hayek
Aderiram os liberais às teorias da conspiração. Falam de uma orquestração de Allende, para mudar a constituição, e da rebelião cívica que travou tais intentos. Reparem bem: já não se fala de golpe militar, mas sim de “rebelião cívica”. Assim vai o revisionismo liberal de Pinera, o autor do artigo do CATO aludido atrás.
Mas o que fez assim de tão grave Salvador Allende, para ser visto como um tirano? Nacionalizou indústrias, prática política assaz corrente na época (até na Europa Ocidental isso sucedia), ferindo é certo interesses americanos, e procurava lançar uma reforma agrária com o objectivo de distribuir terras pelos mais pobres. Tal bastou para ser visto como um perigoso comunista a soldo de Havana e Moscovo, tese que ainda hoje reúne fiéis, como se comprova pelas reacções destes grandes democratas.
O que os move é a vontade de branquear Pinochet, pelo aviltamento da memória desse grande democrata e humanista que foi Salvador Allende. É a tentativa da equivalência moral que procuram estabelecer entre o assassino e corrupto ditador e o político que acreditava nas virtudes da democracia representativa que era Salvador Allende, com muitos anos da sua vida dedicada à causa pública; como membro de longa data do partido socialista; como senador; como ministro e, mais tarde, presidente da república, depois de eleito pela coligação Unidade Popular, que reunia socialistas e comunistas numa frente comum (1970).
Mas quem são estes que vêm hoje acusar Allende?
São os que falam de democracia com arrogância moral de sempre, eles, os grandes democratas da democracia naturalizada, mas que, nos momentos conturbados da História, não hesitam em massacrar communards, aprovar, enquanto deputados da assembleia nacional, plenos poderes para Pétain e pôr os comunistas (falando à maneira de Brecht) em estádios de futebol.
Porque a História repete-se, e esta gente não tem estatura moral para ombrear com um homem como Allende.