Este artigo do antropólogo Miguel Vale de Almeida. Sobre a mudança social e o papel das elites sociais e políticas, em suma, sobre o Portugal iliberal derrotado a 11 de Fevereiro:
No dia anterior ao referendo um amigo relembrava-me a frase que compara as mentalidades espanhola e portuguesa: "Eles matam o touro na arena, nós nos bastidores". É sem dúvida uma frase certeira mas, talvez por ser antropólogo, tenho grandes pruridos em subscrever a ideia de carácter nacional. Na comparação entre Portugal e Espanha - cada vez mais útil e relevante - acho importante pensar em termos das relações entre os habitus e as estruturas sociais mas, sobretudo e para o que interessa aqui, em termos de tempo e modo da mudança. O tempo da mudança social em Portugal é mais lento, por assim dizer. E o modo de negociar a mudança - sobretudo na política - presta constante vassalagem a ideias vagas como "consenso" e "prudência", bem como estimula a reserva da expressão de ideias claramente diferenciadoras. O tempo (e o modo) da mudança portuguesa é, no fundo, camponês. E isto é reforçado pela circunstância de termos passado do ancien régime salazarista para a pós-modernidade consumista, sem a aprendizagem da democracia e dos direitos ou a passagem pela escola - algo que a Europa Ocidental fez ao longo do século XX e a Espanha na "transição".
2) Esperámos trinta anos pela despenalização do aborto. Finalmente, está aí. Mais do que pensar nos pormenores que nos conduziram aqui, gosto de ver a big picture. A despenalização do aborto é uma chave simbólica que servirá para abrir muitas outras portas. É possível agora dizer que em Portugal não se admite, de facto, que o Estado subscreva uma visão moral específica de um grupo e a imponha à comunidade. É possível agora dizer que Portugal começou a sair do iliberalismo que historicamente o caracterizava. E é possível agora dizer que a hierarquia da Igreja Católica perdeu a sua mais importante batalha.
Doravante temos na mão uma chave simbólica com duas entradas: a primeira, liberal, que fecha a porta à imposição duma moral pelo estado e à imposição ao estado de uma moral religiosa; a segunda, equitativa: porque a questão do aborto é também uma questão de igualdade de género, teremos agora que resolver as desigualdades de direitos que restam.