Da natureza das memórias
Viveram-se acontecimentos, conheceram-se pessoas, disseram-se coisas e fizeram-se outras. Estava-se na década de 70.
Eu estava a entrar na escola primária quando o PREC começou a ser passado e dessa época guardo apenas memórias difusas da TV a preto e branco, com umas imagens de tanques a passar nas ruas de uma cidade lá longe (parece que já na altura Lisboa era a capital do país), memória de uma gaivota, que voava, voava..., memória de uns tractores a carregarem com uma carrada de gente no atrelado que diziam à minha família para votarem nas argolinhas, memória de uma viagem da turma da Dª Fátima até Vila Nova de Milfontes, a visitar a Cooperativa Agrícola, e daqueles gaiatos todos a cantarem músicas que tinham aprendido com os pais nos ajuntamentos das argolinhas.
Foi há 30 anos, mais anos, mais mês, mais semana.
Hoje, por estes dias, não faltam as reportagens em que os repórteres (estagiários na casa dos 20 anos, que nem se lembrarão da morte de Sá Carneiro e de Adelino Amaro da Costa, cujo funeral passou por baixo da minha varanda) perguntam aos adolescentes e pré-adolescentes o que sabem sobre o 25 de Abril, os capitães, o Salazar e o Caetano, e a liberdade tão duramente arrancada às prisões da PIDE.
É o mesmo que perguntarem o que sabem sobre a saída de Vasco da Gama para a Índia, a carta de Pero Vaz de Caminha, a chegada do mestre de Aviz a Lisboa ou a batalha de S. Mamede.
Para eles isso está lá algures numa meia dúzia de páginas dos manuais escolares. Tudo junto, tudo parte da mesma obrigação de estudo para ter boas notas e conseguirem o prémio prometido pelos pais.
E porque raio lhes perguntam pela liberdade?
Então porque não lhes perguntam pelo ar que respiram?
Pode ser chocante para quem se lembra da década de 70, do antes (não é o meu caso) e do depois (aí já me lembro).
Deixem os putos em paz; tirem satisfação do facto de eles se rirem das histórias de proibições que o Estado Novo impôs (como eu me ri da história de só se poder acender um isqueiro debaixo de telha e da respectiva lincença de porte e uso), das rídiculas manifestações de crenças no Homem Novo e no Paraíso Terrestre do PREC, da perplexidade perante os assaltos e ocupações de casas e empresas particulares, dos fantásticos comités de bairro que ocupavam os clubes de ténis para dar a conhecer os chuveiros aos filhos do proletariado.
Imaginam o que é explicar a um puto de hoje que tomar banho de chuveiro é coisa da minha geração?
É da natureza das memórias que elas pertençam a quem viveu os dias que as enchem. É da sua natureza que desvaneçam. É da natureza de quem as tem marcadas profundamente, a surpresa por não serem partilhadas por todos.
É da natureza dos adolescentes e crianças deste século que o que se passou há 30 e tal anos seja história, tão memorável como outra coisa qualquer destes últimos 900 anos.
Eu estava a entrar na escola primária quando o PREC começou a ser passado e dessa época guardo apenas memórias difusas da TV a preto e branco, com umas imagens de tanques a passar nas ruas de uma cidade lá longe (parece que já na altura Lisboa era a capital do país), memória de uma gaivota, que voava, voava..., memória de uns tractores a carregarem com uma carrada de gente no atrelado que diziam à minha família para votarem nas argolinhas, memória de uma viagem da turma da Dª Fátima até Vila Nova de Milfontes, a visitar a Cooperativa Agrícola, e daqueles gaiatos todos a cantarem músicas que tinham aprendido com os pais nos ajuntamentos das argolinhas.
Foi há 30 anos, mais anos, mais mês, mais semana.
Hoje, por estes dias, não faltam as reportagens em que os repórteres (estagiários na casa dos 20 anos, que nem se lembrarão da morte de Sá Carneiro e de Adelino Amaro da Costa, cujo funeral passou por baixo da minha varanda) perguntam aos adolescentes e pré-adolescentes o que sabem sobre o 25 de Abril, os capitães, o Salazar e o Caetano, e a liberdade tão duramente arrancada às prisões da PIDE.
É o mesmo que perguntarem o que sabem sobre a saída de Vasco da Gama para a Índia, a carta de Pero Vaz de Caminha, a chegada do mestre de Aviz a Lisboa ou a batalha de S. Mamede.
Para eles isso está lá algures numa meia dúzia de páginas dos manuais escolares. Tudo junto, tudo parte da mesma obrigação de estudo para ter boas notas e conseguirem o prémio prometido pelos pais.
E porque raio lhes perguntam pela liberdade?
Então porque não lhes perguntam pelo ar que respiram?
Pode ser chocante para quem se lembra da década de 70, do antes (não é o meu caso) e do depois (aí já me lembro).
Deixem os putos em paz; tirem satisfação do facto de eles se rirem das histórias de proibições que o Estado Novo impôs (como eu me ri da história de só se poder acender um isqueiro debaixo de telha e da respectiva lincença de porte e uso), das rídiculas manifestações de crenças no Homem Novo e no Paraíso Terrestre do PREC, da perplexidade perante os assaltos e ocupações de casas e empresas particulares, dos fantásticos comités de bairro que ocupavam os clubes de ténis para dar a conhecer os chuveiros aos filhos do proletariado.
Imaginam o que é explicar a um puto de hoje que tomar banho de chuveiro é coisa da minha geração?
É da natureza das memórias que elas pertençam a quem viveu os dias que as enchem. É da sua natureza que desvaneçam. É da natureza de quem as tem marcadas profundamente, a surpresa por não serem partilhadas por todos.
É da natureza dos adolescentes e crianças deste século que o que se passou há 30 e tal anos seja história, tão memorável como outra coisa qualquer destes últimos 900 anos.