terça-feira, setembro 25, 2007

No Coração desta Terra


Numa remota fazenda, uma mulher; na imensidão de África.

Através dela, da sua escrita em forma diária, vamos conhecendo as personagens que partilham esse espaço, o pai, viúvo, e os criados hotentotes, Hendrik e a sua noiva-menina, Anna (Klein-Anna).

A protagonista deste romance de J. M. Coetzee é uma mulher amargurada, esquecida, à margem da vida. É animada pela fúria contra um destino madrasto . Inteligente e cheia de ódio. Implacável e minuciosa no diagnóstico da sua condição.
No Coração desta Terra (The Heart of The Country) é um romance estruturado em torno de notas diarísticas, a partir das quais Coetzee vai operando uma espécie de desconstrução da narrativa, embora acabando por preservar o fio condutor.
Em muitos trechos, a fértil imaginação da protagonista (prodigiosa mente feminina engendrada por Coetzee!) submerge a realidade circundante. Ou, se quisermos, é a realidade. Pelas ficções a que se entrega (talvez para manter a sanidade ou salvar a alma), entrevemos esse mundo colonial, os seus códigos e interditos, as suas relações de ordem e hierarquia.
Nem tudo é imaginação feminina, a realidade irrompe, com o parricídio (o pai tinha feito de Anna, a criada africana, sua amante, o que desencadeou o gesto trágico da filha), a inversão de papéis, a humilhação às mãos de Hendrik. No fim de tudo, a solidão. A terrível solidão desta mulher.

P.S. Hotentotes, povos que habitavam os desertos e terra áridas do sul de África.


1. HOJE, O MEU PAI TROUXE PARA CASA A sua noiva. Atravessaram planícies, toque-toque, numa carreta puxada por um cavalo, com uma pena de avestruz a adejar na cabeça, suja por causa da longa caminhada. Ou talvez tivessem sido puxados por duas mulas de plumas - também era possível. O meu pai vinha de fraque e cartola, a noiva trazia um chapéu de aba larga e um vestido branco apertado na cinta e no pescoço. Não posso contar mais pormenores a não ser que os invente, já que não os vi chegar. Estava no meu quarto, de portadas fechadas, no lusco-fusco esmeralda do fim de tarde, a ler um livro ou, o que seria mais provável, deitada, com uma toalha húmida nos olhos por causa da enxaqueca. eu sou das ficam no quarto a ler, a escrever ou curar a enxaqueca. As colónias estão cheias deraparigas assim, mas nenhuma, acho eu, tão radical quanto eu.
O meu pai é dos que andam de um lado para o outro, incessantemente, em passos lentos e de botas pretas.
E há depois a terceira personagem, a sua nova esposa, que dorme até tarde. São estes os antagonistas.

248. As vozes falam. Na ausência de inimigos e de resistências externas, enclausurado numa pequenez e regularidades opressivas, a única alternativa do homem é lançar-se à aventura. Acusam-me, se é que as compreendo, de transformar a minha vida numa ficção em virtude do tédio que sinto. Acusam-me, se bem que com muito tacto, de ficar mais violenta, mais inconstante, mais destroçada pelas amarguras do que realmente fico, como se me estivesse a ler como um livro, um livro enfadonho que punha de lado, preferindo inventar-me a mim própria. É assim que eu entendo as acusações dessa vozes. Dizem-me que não criei a minha história por revolta contra uma verdadeira opressão, mas, sim, como reacção contra o tédio que era servir o emu pai, mandar nas criadas, cuidar da lida da casa, passar os anos nesta modorra; como não encontrei o tal inimigo externo, como não apareceram hordas de cavaleiros de cor vindos das colinas, bradindo os seus arcos e aos gritos , fiz de mim um inimigo, do meu ser pacífico, do ser obediente que mais não queria do que fazer as vontades ao pai e desabrochar à vontade.

In No Coração desta Terra.