O testemunho
De um professor de Portimão:
Que o novo modelo de avaliação é inútil e ineficaz já o provou definitivamente, sem o querer, a senhora ministra. Diz ela repetidamente que esta avaliação é absolutamente necessária para a qualidade do ensino e para a melhoria dos resultados. Porém, anunciou com grande pompa ao país que os resultados melhoraram no último ano, o que acabou por ser reforçado com a divulgação dos resultados dos exames nacionais. Só que esta apregoada melhoria da qualidade e dos resultados verificou-se ainda antes de o modelo de avaliação produzir qualquer efeito. Logo, fica provado que a avaliação não é uma condição necessária para a melhoria da qualidade e dos resultados. O que leva então a ministra a dizer que a avaliação é absolutamente necessária?
Os responsáveis pelo actual ministério da educação parecem, talvez inconscientemente, querer pôr em prática o cenário tenebroso descrito por George Orwell em "Mil Novecentos e Oitenta e Quatro", em que a catadupa de despachos, decretos regulamentares, documentos orientadores, ordens de serviço, instruções superiores, recomendações, etc., frequentemente incoerentes – vale a pena dizer que acumulo em casa mais de mil fotocópias sobre avaliação, que me foram entregues na escola –, são a tradução quase literal do "Big Brother is watching you" da 5 de Outubro. A obsessão do ministério por controlar tudo e todos até ao mais pequeno detalhe está bem patente no modelo de fichas de avaliação que impõe às escolas e aos professores (parece que a ideia é a de que, entre tanta coisa pedagogicamente inane, sempre há-de haver uns quantos aspectos em que o avaliado vai falhar, de modo a não atrapalhar as escassas cotas disponíveis para progressão na carreira). E o mais irónico é que, quando se encontram incoerências e impasses nas instruções oriundas do ministério, a ministra deixa o problema para as próprias escolas com o argumento de que lhes quer dar autonomia na construção dos seus instrumentos de avaliação. Não é, pois, surpreendente que os professores se sintam desorientados, cansados, chantageados e até insultados. Isso acaba naturalmente por se reflectir na sua prática lectiva e os alunos notam bem a diferença quando o professor dá as aulas cansado.
Mas o pior de tudo é que o modelo de avaliação fabricado na 5 de Outubro não vai permitir distinguir os bons dos maus professores, ao contrário do que a senhora ministra alega. Talvez seja até pior do que a completa ausência de avaliação, premiando arbitrariamente alguns dos maus e castigando cegamente muitos dos bons. Se assim não fosse, que razões teriam os bons professores que desfilaram na manifestação de sábado para lá estarem? Ou será que os mais de cem mil são todos maus ou simplesmente estúpidos? Os professores sentem-se compreensivelmente ameaçados porque o modelo, além de burocrático, como convém ao Big Brother, obedece a uma espécie de pensamento único pedagógico: há um dogma pedagógico subjacente a que todos têm de aderir, tal como se emanasse do Ministério da Verdade orwelliano. Esse dogma é o da pedagogia do eduquês: são os resultados a qualquer preço, é a inovação a martelo, são as “estratégias de ensino-aprendizagem” como se o professor fosse o aprendiz (também o é, mas noutro sentido). Enfim, é a avaliação do portfólio e dossiê do professor para ver se ele tem o seu caderno diário em ordem, infantilizando uma actividade em que, pelo contrário, se exige autonomia e auto-confiança.
Aires Almeida, In Público
Os responsáveis pelo actual ministério da educação parecem, talvez inconscientemente, querer pôr em prática o cenário tenebroso descrito por George Orwell em "Mil Novecentos e Oitenta e Quatro", em que a catadupa de despachos, decretos regulamentares, documentos orientadores, ordens de serviço, instruções superiores, recomendações, etc., frequentemente incoerentes – vale a pena dizer que acumulo em casa mais de mil fotocópias sobre avaliação, que me foram entregues na escola –, são a tradução quase literal do "Big Brother is watching you" da 5 de Outubro. A obsessão do ministério por controlar tudo e todos até ao mais pequeno detalhe está bem patente no modelo de fichas de avaliação que impõe às escolas e aos professores (parece que a ideia é a de que, entre tanta coisa pedagogicamente inane, sempre há-de haver uns quantos aspectos em que o avaliado vai falhar, de modo a não atrapalhar as escassas cotas disponíveis para progressão na carreira). E o mais irónico é que, quando se encontram incoerências e impasses nas instruções oriundas do ministério, a ministra deixa o problema para as próprias escolas com o argumento de que lhes quer dar autonomia na construção dos seus instrumentos de avaliação. Não é, pois, surpreendente que os professores se sintam desorientados, cansados, chantageados e até insultados. Isso acaba naturalmente por se reflectir na sua prática lectiva e os alunos notam bem a diferença quando o professor dá as aulas cansado.
Mas o pior de tudo é que o modelo de avaliação fabricado na 5 de Outubro não vai permitir distinguir os bons dos maus professores, ao contrário do que a senhora ministra alega. Talvez seja até pior do que a completa ausência de avaliação, premiando arbitrariamente alguns dos maus e castigando cegamente muitos dos bons. Se assim não fosse, que razões teriam os bons professores que desfilaram na manifestação de sábado para lá estarem? Ou será que os mais de cem mil são todos maus ou simplesmente estúpidos? Os professores sentem-se compreensivelmente ameaçados porque o modelo, além de burocrático, como convém ao Big Brother, obedece a uma espécie de pensamento único pedagógico: há um dogma pedagógico subjacente a que todos têm de aderir, tal como se emanasse do Ministério da Verdade orwelliano. Esse dogma é o da pedagogia do eduquês: são os resultados a qualquer preço, é a inovação a martelo, são as “estratégias de ensino-aprendizagem” como se o professor fosse o aprendiz (também o é, mas noutro sentido). Enfim, é a avaliação do portfólio e dossiê do professor para ver se ele tem o seu caderno diário em ordem, infantilizando uma actividade em que, pelo contrário, se exige autonomia e auto-confiança.
Aires Almeida, In Público