A vontade de não querer tomar conhecimento
Caro Marvão,
Vendo-te no sofrimento da dúvida sobre a necessidade da existência de executivos bancários (confessa que se trata de uma proxy para todo o sistema bancário), resolvi avivar-te a memória. Reapara que não pretendo ensinar-te nada (quem sou eu! nem nunca li Negri!) apenas recordar-te algo sobre a tua própria vida que entretanto esqueceste (tens de cortar no queijo, rapaz!).
Quando compraste a tua casa, recordo-me que passaste meses, todos os dias e durante muitas horas indo de porta em porta a pedir a todas as pessoas em Setúbal que deixassem para mais tarde parte dos consumos que se preparavam para fazer com os rendimentos que tinham auferido (na Setenave, na Autoeuropa, como profissionais independentes ou ainda como funcionários estatais; sendo ideologicamente selectivo não contactaste ninguém que vivesse de poupanças passadas, vulgo capital) e te entregassem o que pudessem para que tu exercesses o teu direito constitucionalo-social à habitação. Prometias que o irias devolvendo conforme pudesses e achasses conveniente.
Durou isto muito tempo, pois uns diziam que não sabiam se precisariam do dinheiro amanhã ou depois, outros não te conheciam e desconfiavam que fosses um gandulo mal intencionado e que não lhes devolvesses o seu rendimento que tanto lhes custou a ganhar.
Sabendo da tua boa índole e da necessidade de fazer cumprir o teu direito constitucionalo-social à habitação, recordo-me que os teus amigos e conhecidos se juntaram para também eles perguntarem aos seus conhecidos se eles não se importavam de ceder parte dos seus rendimentos (quiçá deixando para mais tarde a compra de um novo frigorífico, já que o velhinho ainda funcionava bem com a ajuda do Arrefecimento Global) a ti, um desconhecido deles mas que os teus amigos garantiam ser um tipo às direitas (no pun intended!).
Dias, semanas, meses, anos. Finalmente, após muito tempo, conseguiste juntar todo o dinheiro e quando te dirigias com o vendedor para registar a compra da casa dos teus sonhos, eis que uma horda de conterrâneos a quem tinhas pedido o dinheiro te aparece no caminho exigindo que lhes devolvas o dinheiro porque todos os aquecedores tinham avariado ao mesmo tempo (o maldito Arrefecimento Global tinha sido tanto que os velhos equipamentos não tinham aguentado). Cercado por tal multidão fizeste o que se esperava de uma pessoa de bem: devolveste tudo e anulaste a compra.
Infelizmente tinhas passado tnto tempo nesta demanda de financiamento que tinhas ficado desempregado e tinhas perdido todos os programas das Novas Oportunidades que te requalificariam para voltares ao mercado de trabalho.
Eu recordo-me. Foram tempos díficeis. Foi pena que nesse tempo não existisse ainda o sistema bancário. Muitos de nós, em tempos mais recentes, temos evitado todas as atribulações porque passaste. No entanto, no que leio das tuas palavras parece-me que te esqueceste do que passaste e dos prejuízos que sofreste. É pena que a memória da nossa vida não nos ensine mais. A memória, não eu claro.