A França e os motins urbanos
É desoladora a forma como uma parte da blogosfera olha para os motins urbanos na região parisiense. Eles, os da direita liberal, parecem exultar com a espiral de destruição em curso, imagem da falência do modelo social francês (europeu). Fosse uma revolta urbana algures numa metrópole das terras do tio Sam e o discurso seria certamente outro; bem como a proliferação de imagens.
Eu bem poderia enveredar pelo maniqueísmo deles e dizer que tais fenómenos até são mais comuns lá do que cá. Mas não vou por aí.
Importa ir à raiz das coisas, que evidentemente não se esgotam na estéril discussão sobre se devemos ter mais ou menos estado.
Em primeiro lugar, grassa nas nossas sociedades uma cultura de tolerância para com o pequeno delito e para com toda a sorte de incivilidades quotidianas. Temos, em suma, um estado de violência latente que por vezes atinge o paroxismo. E em contextos urbanos marcados por clivagens étnicas, em que determinados grupos ou populações construíram uma representação social baseada na exclusão, basta um pequeno incidente para atear o rastilho da pólvora. Julgo que isto é válido tanto para a Europa como para os Estados Unidos.
Em segundo lugar, a proliferação de áreas urbanas e suburbanas à margem do Direito favorece a cultura de violência, o aviltamento da dignidade dos indivíduos. Regressando ao caso francês, o Estado e as elites políticas abdicaram de impor a lei nas cités, deixando terreno livre aos imãs ou a grupos de jovens delinquentes. É o caminho da barbárie.
Terceiro, o discurso politicamente correcto tolhe a consciência dos actores políticos e dos mídia. Opera uma torção sobre os factos : um delinquente não é mais um delinquente, mas sim um jovem vítima de discriminação e oriundo de um “bairro problemático”; o comportamento individual fica então diluído numa categoria social, passando a ser estigmatizada uma população inteira (os jovens ou os moradores de um determinado bairro). Também em França (mas não é caso único) vimos o efeito desse discurso na práticas políticas, com a presença de um responsável autárquico no funeral dos jovens que morreram eletrocutados, e cujos pais foram até recebidos pelo primeiro-ministro, ao mesmo tempo que era esquecida a morte de um homem vítima de linchamento, ocorrida nessa mesma noite. Esta duplicidade não convém a ninguém, a não ser talvez à extrema-direita.
Quarto, o urbanismo não é a panaceia para todos os males da vida social. A respeito das cités, lembro que significaram a melhoria das condições de vida de muitas famílias, da classe operária francesa aos emigrantes portugueses, italianos, espanhóis, etc. Foi uma intervenção bem sucedida até às décadas da crise (segunda metade dos anos setenta e anos oitenta). Não vamos agora culpar a arquitectura funcionalista pela irrupção de comportamentos anómicos em larga escala. Isto conduz-nos inevitavelmente à forma irresponsável como os sucessivos governos trataram a imigração, o que não é um exclusivo francês.
Por fim, que este post já vai longo, o contexto de exclusão em que se encontram os jovens saídos da imigração, a segunda e nalguns casos terceira geração, com particular relevância para os do Magreb ou da África Subsariana, exige algo mais do que meras prestações sociais e programas de inserção na vida activa (atenção, não estou a favor da sua redução, penso apenas que isso por si só não é suficiente). É necessário todo um trabalho cívico que reforce o sentimento de identificação com os valores do país onde nasceram e vivem.
Eu bem poderia enveredar pelo maniqueísmo deles e dizer que tais fenómenos até são mais comuns lá do que cá. Mas não vou por aí.
Importa ir à raiz das coisas, que evidentemente não se esgotam na estéril discussão sobre se devemos ter mais ou menos estado.
Em primeiro lugar, grassa nas nossas sociedades uma cultura de tolerância para com o pequeno delito e para com toda a sorte de incivilidades quotidianas. Temos, em suma, um estado de violência latente que por vezes atinge o paroxismo. E em contextos urbanos marcados por clivagens étnicas, em que determinados grupos ou populações construíram uma representação social baseada na exclusão, basta um pequeno incidente para atear o rastilho da pólvora. Julgo que isto é válido tanto para a Europa como para os Estados Unidos.
Em segundo lugar, a proliferação de áreas urbanas e suburbanas à margem do Direito favorece a cultura de violência, o aviltamento da dignidade dos indivíduos. Regressando ao caso francês, o Estado e as elites políticas abdicaram de impor a lei nas cités, deixando terreno livre aos imãs ou a grupos de jovens delinquentes. É o caminho da barbárie.
Terceiro, o discurso politicamente correcto tolhe a consciência dos actores políticos e dos mídia. Opera uma torção sobre os factos : um delinquente não é mais um delinquente, mas sim um jovem vítima de discriminação e oriundo de um “bairro problemático”; o comportamento individual fica então diluído numa categoria social, passando a ser estigmatizada uma população inteira (os jovens ou os moradores de um determinado bairro). Também em França (mas não é caso único) vimos o efeito desse discurso na práticas políticas, com a presença de um responsável autárquico no funeral dos jovens que morreram eletrocutados, e cujos pais foram até recebidos pelo primeiro-ministro, ao mesmo tempo que era esquecida a morte de um homem vítima de linchamento, ocorrida nessa mesma noite. Esta duplicidade não convém a ninguém, a não ser talvez à extrema-direita.
Quarto, o urbanismo não é a panaceia para todos os males da vida social. A respeito das cités, lembro que significaram a melhoria das condições de vida de muitas famílias, da classe operária francesa aos emigrantes portugueses, italianos, espanhóis, etc. Foi uma intervenção bem sucedida até às décadas da crise (segunda metade dos anos setenta e anos oitenta). Não vamos agora culpar a arquitectura funcionalista pela irrupção de comportamentos anómicos em larga escala. Isto conduz-nos inevitavelmente à forma irresponsável como os sucessivos governos trataram a imigração, o que não é um exclusivo francês.
Por fim, que este post já vai longo, o contexto de exclusão em que se encontram os jovens saídos da imigração, a segunda e nalguns casos terceira geração, com particular relevância para os do Magreb ou da África Subsariana, exige algo mais do que meras prestações sociais e programas de inserção na vida activa (atenção, não estou a favor da sua redução, penso apenas que isso por si só não é suficiente). É necessário todo um trabalho cívico que reforce o sentimento de identificação com os valores do país onde nasceram e vivem.
São desafios com que as sociedades ocidentais estão confrontadas. Se alguns são especificamente europeus (caso do fenómeno da imigração pós-colonial e da integração das novas populações), outros dizem respeito quer aos EUA quer à Europa.