Há alguns equívocos nesta coisa de associar a pobreza à violência social e urbana, algo que a esquerda e mesmo muitos outros fora do espectro desta têm feito até à exaustão, a ponto de não mais se distinguir de um qualquer dogma. Neste caso de um dogma feito da vulgata das ciências sociais. É indulgente e socialmente muito perigoso.
Não estou com isto a dizer que a pobreza e as injustiças sociais não contribuam para eclosão da revolta e dos fenómenos de violência que por vezes lhe vêm associados. Apenas sustento que as relações (entre pobreza e comportamento criminoso ou violento) não são lineares ou simples. E nem sempre evidentes, pois múltiplas são as causas da violência (estou aqui a circunscrever este conceito aos fenómenos de criminalidade urbana grupal, envolvendo jovens, e não às formas de violência simbólica que grassam na nossa sociedade).
Sinto que, perante acontecimentos como os ocorridos agora na Bairro da Bela Vista, nos socorremos dos discursos de sempre, como se estes nos pusessem a salvo da realidade.
Como se estivéssemos a brincar às ideologias. Assim, se somos de esquerda, a culpa é das (iníquas) políticas do Estado que geram cada vez mais desigualdade e injustiça, e que, enquanto não combatermos eficazmente estas causas, a criminalidade persistirá. Se somos de direita, dizemos grosso modo que a culpa é do estado social, da brandura das leis penais e da imigração sem freio.
Em suma, a esquerda pensa que resolve o problema com mais e melhores políticas sociais; a direita, com leis mais duras e mais polícias na rua.
É honesto reconhecer que, sobre esta temática, o discurso da esquerda é largamente dominante no espaço público, a ponto dele fazerem eco actores de outros espaços ideológicos e culturais (vide, por exemplo, o caso de figuras da Igreja Católica). Mas convém não perder de vista que o discurso da direita alastra perigosamente entre os que não têm voz, aqueles que se sentem mais directamente afectados por este tipo de criminalidade urbana. E isso poderá dar origem a movimentos populistas, como os que existem por essa Europa fora.
Situando-me algures nas esquerdas da esquerda, não deixo porém de entrever os limites das políticas sociais. Não estou a dizer que estas não tenham produzido resultados (ainda que a espuma dos dias tenda a ocultá-los), ou que não sejam necessárias mais políticas e programas desta natureza, em face dos problemas que enfrentamos. Estou a falar dos limites de tais políticas. Que podem estas políticas perante uma sociedade desprovida de valores éticos, cuja referência última é a acumulação material de riqueza material ou o consumo desenfreado? Que podem estas políticas perante uma economia de casino com o seu cortejo de enriquecimento ilícito, de corrupção e de toda a sorte de malfeitorias (vide os banqueiros e os executivos da alta finança)?
Importa, também, reconhecer que existem limites que não radicam nas instituições societais, mas sim na natureza humana. Por mais perfeitas que sejam as políticas sociais, por mais recursos que mobilizem, elas nada podem contra o lado sombrio da natureza humano. Contra o fascínio que a violência exerce em muitos de nós, a ponto de ser uma espiral da qual não conseguimos sair. E da qual retiramos prazer! Infelizmente, não somos o bom selvagem de Rousseau. Isto, que se aplica à vida do gangue, foi algo de que nos esquecemos. Nós, os de esquerda, os cientistas sociais (embora não os historiadores militares nem os antropólogos) e ainda as muitas consciências bem pensantes no conforto da sua existência. Em Portugal e na Europa.
Ora, para fazer face a grupos cada vez mais violentos e ousados, é necessário contar com forças policiais eficazes e actuantes. Não bastam as políticas sociais, a polícia também é parte da solução! A esquerda não deveria ter complexos quanto a isso!
Eu confesso, pela minha parte, que gostaria de viver num mundo em que não houvesse Estado, mas reconheço que a alternativa (imediata) poderia ser bem pior. Prefiro o Estado a um mundo dominado por gangues. E penso que os moradores da Bela Vista também.